João Huss (Jonh Huss) nasceu por volta de 1370 de
uma família camponesa que vivia na pequena aldeia de Hussinek, e ingressou na
universidade de Praga quando tinha uns dezessete anos. A partir de então toda
sua vida transcorreu na capital de seu país, excetuados seus dois anos de
exílio e encarceramento em Constança. Em 1402 ele foi nomeado reitor e pregador
da capela de Belém. Ali ele pregou com dedicação a reforma que tantos outros
checos propugnavam desde tempos de Carlos IV. Sua eloquência e fervor eram
tamanhos que aquela capela em pouco tempo se transformou no centro do movimento
reformador. Venceslau e sua esposa Sofia o escolheram por seu confessor, e lhe
deram apoio. Alguns dos membros mais destacados da hierarquia começaram a
encará-lo com receio, mas boa parte do povo e da nobreza parecia segui-lo, e o
apoio dos reis ainda era suficientemente importante para que os prelados não se
atrevessem a tomar medidas contra o pregador entusiasmado. No mesmo ano que
passou a ocupar o púlpito de Belém, Huss foi feito reitor da universidade, de
modo que se encontrava em ótima posição para impulsionar a reforma.
Era a época em que, em resultado do
concílio de Pisa, havia três papas. Venceslau apoiava o papa pisano, enquanto o
arcebispo de Praga e os alemães da universidade apoiavam Gregório XII.
Venceslau necessitava do apoio da universidade para sua política, e já que os
checos estavam em maioria nela, o rei simplesmente mudou o sistema de votação,
dando três votos aos checos e um aos alemães. Estes, então, abandonaram a
cidade e foram para Leipzig, onde fundaram uma universidade rival, declarando
que a de Praga se entregara à heresia. Se bem que isto constituiu um grande
trunfo para o movimento hussita, também contribuiu para propagar a idéia de que
este movimento não passava de outra versão do wyclifismo, sendo, portanto,
herege. Mais tarde o arcebispo se submeteu à vontade do rei, e reconheceu o
papa pisano. Mas se vingou de Huss e dos seus solicitando deste papa, Alexandre
V, que proibisse a posse das obras de Wycliff. O papa concordou, e proibiu
também as pregações fora das catedrais, dos mosteiros ou das igrejas
paroquiais. Como o púlpito de Huss, na capela de Belém, não se enquadrava
nestas determinações, o golpe estava claramente dirigido contra ele. A
universidade de Praga protestou. Mas João Huss tinha agora de fazer a difícil
escolha entre desobedecer o papa e deixar de pregar. Com o passar do tempo sua
consciência se impôs. Ele subiu ao púlpito e continuou pregando a tão ansiada
reforma. Este foi seu primeiro ato de desobediência, e a ele seguiram muitos
outros, pois quando em 1410 foi convocado para Roma, para dar conta das suas
ações, ele se negou a ir, e em consequência o cardeal Colonna o excomungou em
1411, em nome do papa, por não ter acedido à convocação papal. Mas apesar disto
Huss continuou pregando em Belém e participando da vida eclesiástica, pois
contava com o apoio dos reis e de boa parte do país. Assim Huss chegou a um dos
pontos mais revolucionários da sua doutrina. Um papa indigno, que se opunha ao
bem-estar da igreja, não deve ser obedecido. Huss não estava dizendo que o papa
não era legítimo, pois continuava favorável ao papa pisano. Mas mesmo assim o
papa não merecia ser obedecido. Até aqui Huss não estava dizendo mais que os
líderes do movimento conciliar, na mesma época. A diferença estava em que estes
se ocupavam principalmente da questão jurídica de como decidir entre vários
papas rivais, e buscavam a solução deste problema nas leis e nas tradições da
igreja, enquanto Huss acabara por seguir Wycliff até este ponto, declarando que
a autoridade final é a Bíblia, e que um papa que não se conforme a ela não deve
ser obedecido. Mas mesmo assim isto era, com poucas diferenças, o que Guilherme
de Occam tinha dito, ao declarar que nem o papa nem o concílio, mas somente as
Escrituras eram infalíveis.
Outro incidente turbou a questão
ainda mais. João XXIII, o papa pisano, estava em guerra com Ladislau de
Nápoles. Nesta contenda sua única esperança de vitória estava em obter o apoio,
tanto militar como econômico, do restante da cristandade latina. Para tanto ele
declarou que a guerra com Ladislau era uma cruzada, e promulgou a venda de
indulgências para custeá-la. Os vendedores chegaram à Boêmia, usando de todo
tipo de métodos para vender sua mercadoria. Huss, que vinte anos antes tinha
comprado uma indulgência, mas que agora mudara de opinião, protestou contra
este novo abuso. Em primeiro lugar uma guerra entre cristãos dificilmente
poderia receber o título de cruzada. E em segundo, somente Deus pode conceder
indulgência, e ninguém pode querer vender o que vem unicamente de Deus. O rei,
entretanto, tinha interesse em manter boas relações com João XXIII. Entre
outras razões para isto, a questão de se ele ou seu irmão Sigismundo era o
imperador legítimo ainda não fora decidida, e era possível que, se a autoridade
de João XXIII viesse a se impor, seria ele quem teria de decidir a questão. Por
isto o rei proibiu que a venda de indulgências continuasse sendo criticada. Sua
proibição, todavia, veio tarde demais. A opinião de João Huss e de seus
companheiros já era conhecida de todos, a ponto de terem surgido passeatas do
povo, em protesto contra esta nova maneira de explorar o povo checo.
Enquanto isto João XXIII e Ladislau
fizeram as pazes, e a pretensa cruzada foi revogada. Huss, no entanto, para
Roma ficou sendo o líder de uma grande heresia, e até chegou-se a dizer que
todos os boêmios eram hereges. Em 1412 Huss foi excomungado de novo, por não
ter comparecido diante da corte papal, e foi fixado um prazo curto para ele se
apresentar. Se não o fizesse, Praga ou qualquer outro lugar que lhe desse
acolhida estaria sob interdito. Desta forma a suposta heresia de Huss
resultaria em prejuízo da cidade. Por esta razão o reformador checo decidiu
abandonar a cidade onde tinha passado a maior parte da sua vida, e se refugiar
no sul da Boêmia, onde continuou sua atividade reformadora dedicando-se à
literatura. Ali ele recebeu a notícia de que finalmente se reuniria um grande
concílio em Constança, e que ele estava convidado para lá comparecer e se
defender pessoalmente. Para isto o imperador Sigismundo lhe ofereceria um
salvo-conduto, que lhe garantiria sua segurança pessoal.
Huss diante do concílio
O concílio de Constança prometia ser
a aurora de um novo dia na igreja. Tinham comparecido a ele os mais distintos
defensores da reforma através de um concílio, João Gerson e Pedro de Ailly.
Nele seria decidido de uma vez por todas quem era o papa legítimo, e seriam
tomadas medidas contra a simonia, o pluralismo e tantos outros males. E João
Huss estava convidado, para apresentar seu caso. Aquela assembleia poderia ser
o grande púlpito que ele usaria para pregar a reforma. Por isto Huss não
poderia deixar de ir. Mas por outro lado já o fato de ter sido necessário um
salvo-conduto era um indício dos perigos que poderiam estar esperando por ele.
Huss sabia que os alemães que tinham se transferido para Leipzig tinham
continuado espalhando o rumor de que ele era herege. E sabia também que não
podia contar com nenhuma simpatia da parte de João XXIII e da sua cúria. Por
isto antes de partir ele deixou um documento que deveria ser lido no caso de
sua morte. Para medirmos o caráter deste homem, observemos de passagem que este
documento era uma confissão em que declarava que um dos seus grandes pecados
era – que gostava demais de jogar xadrez! Os perigos que o esperavam em
Constança eram grandes. Mas sua consciência o obrigava a ir. E assim partiu o
reformador checo, confiando no salvo-conduto imperial e na justiça da sua
causa.
João XXIII o recebeu com cortesia,
mas poucos dias depois o chamou para o consistório papal. Huss foi, mesmo
insistindo em que tinha vindo para expor sua fé diante do concílio, e não do
consistório. Ali ele foi formalmente acusado de herege, e ele respondeu que
preferia morrer que ser herege, e que o convencessem de que o era, ele se
retrataria. A questão ficou suspensa, mas a partir de então Huss foi tratado
como um prisioneiro, primeiro em sua casa, depois no palácio do bispo, e por
último em uma série de conventos que lhe serviam de prisão. Quando o imperador,
que ainda não tinha chegado em Constança, soube o que tinha acontecido, ficou
extremamente irado, e prometeu fazer respeitar seu salvo-conduto. Mas depois
começou a dar menos ênfase nisto, pois não lhe convinha aparecer como protetor
de hereges. Em vão foram os protestos do próprio Huss, como o foram os que
chegaram de muitos nobres boêmios. Huss possuía inclusive um certificado do
Grande Inquisidor da Boêmia, declarando que ele era inocente de qualquer
heresia. Só que para os italianos, alemães e franceses, que eram a imensa
maioria no concílio, os boêmios não passavam de bárbaros que sabiam pouco de
teologia, e cujos pronunciamentos não deveriam ser levados a sério.
No dia 5 de junho de 1415, Huss
compareceu diante do concílio. Poucos dias antes João XXIII tinha sido
aprisionado e trazido de volta para Constança, como narramos no capítulo IV. Já
que isto significava que o papa pisano tinha perdido todo o poder, e já que
Huss tivera seus piores conflitos com ele, era de se supor que a situação do
reformador melhoraria. Mas sucedeu o contrário. Quando Huss foi levado para a
assembléia ele estava acorrentado, como se tivesse tentado fugir ou se já
tivesse sido julgado. Foi acusado formalmente de ser herege, e de seguir as
doutrinas de Wycliff. Huss tentou expor suas opiniões, mas a algazarra foi
tamanha que ele não se podia fazer ouvir. Por fim foi decidido adiar a questão
para o dia 7 do mesmo mês. O processo de Huss durou mais três dias.
Repetidamente ele foi acusado de herege. Mas quando foram relacionadas as
doutrinas concretas de que supostamente consistia sua heresia, Huss demonstrou
que era perfeitamente ortodoxo. Pedro de Ailly assumiu a liderança do
julgamento, exigindo que Huss se retratasse de suas heresias. Huss insistia em que
nunca tinha crido nas doutrinas de que exigiam que ele se retratasse, e que por
isto não podia fazer o que de Ailly requeria dele.
Não havia maneira de resolver o
conflito. De Ailly queria que Huss se submetesse ao concílio, cuja autoridade
não podia ficar em dúvida. Huss lhe mostrava que o papa que o tinha acusado de
desobediência era o mesmo que o concílio acabara de depor. Mostrar suas
contradições a um homem supostamente sábio, tido como homem mais ilustre da
época, e isto diante de uma grande assembléia, nem sempre é uma atitude sábia.
O rancor do seu juiz aumentava cada vez mais. Outros líderes do concílio, entre
eles João Gerson, diziam que estava desperdiçando o tempo que deveriam dedicar
a questões mais importantes, e que de qualquer forma os hereges não merecem
tanta atenção. O imperador se deixou convencer de que ele não precisa guardar
sua palavra para com os que não têm fé, e retirou seu salvo-conduto. Quando
Huss acabou dizendo que era verdade que ele tinha dito que se não quisesse ter
vindo para Constança, nem o imperador nem o rei teriam podido obrigá-lo, seus
acusadores viram nisto a prova de que ele era um herege obstinado e orgulhoso –
apesar de o nobre boêmio João de Clum, que o defendeu valentemente até o final,
ter declarado que o que Huss dissera era verdadeiro, e que tanto ele como
muitos outros mais poderosos do que ele teriam protegido Huss se este tivesse
decidido não ir ao concílio.
O concílio pedia unicamente que o
Huss se submetesse a ele, retratando-se das suas doutrinas. Mas não estava
disposto a escutar nem crer no acusado, quanto a quais eram as doutrinas que
tinham crido e ensinado na verdade. Uma simples retratação teria bastado. O
cardeal Zabarella preparou um documento em que exigia de Huss que se retratasse
de seus erros, e aceitasse a autoridade do concílio. O documento estava
cuidadosamente redigido, porque seus juízes queriam lhe dar todas as
oportunidades para que se retratasse, e assim ganhar a disputa, mas o
reformador checo sabia que se se retratasse, com isto estaria condenado todos
os seus seguidores, pois se declarasse que suas doutrinas eram aquelas que seus
inimigos tinham apresentado, estaria nisto implícito que seus companheiros
criam nas mesmas coisas, e que portanto eram hereges. A resposta de Huss foi
firme:
Apelo a Jesus Cristo, o único juiz
todo-poderoso e totalmente justo. Em suas mãos eu deponho a minha causa, pois
Ele há de julgar cada um não com base em testemunhos falsos e concílios
errados, mas na verdade e na justiça.
Por vários dias o deixaram encarcerado,
na esperança de que fraquejasse e se retratasse. Muitos foram lhe pedir que o
fizesse, talvez sabendo que sua condenação seria uma mancha indelével para o
concílio de Constança. Mas João Huss continuou firme. Por fim, no dia 6 de
julho, ele foi levado para a catedral de Constança. Ali, depois de um sermão
sobre a teimosia dos hereges, ele foi vestido de sacerdote e recebeu o cálice,
somente para logo em seguida lhe arrebatarem ambos, em sinal de que estava
perdendo suas ordens sacerdotais. Depois lhe cortaram o cabelo para estragar a
tonsura, fazendo-lhe uma cruz na cabeça. Por último lhe colocaram na cabeça uma
coroa de papel decorada com diabinhos, e o enviaram para a fogueira. A caminho
do suplício, ele teve de passar por uma pira onde ardiam seus livros.
Mais uma vez lhe pediram que se
retratasse, e mais uma vez ele negou com firmeza. Por fim orou, dizendo:
"Senhor Jesus, por Ti sofro com paciência esta morte cruel. Rogo-Te que
tenhas misericórdia dos meus inimigos". Morreu cantando os salmos.
Fonte:
E.Cristianismo - www.e-cristianismo.com.br
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