Uma das figuras femininas mais
importantes da Reforma Protestante do Século XVI foi, sem dúvida, Katharina Von
Bora. Não que ela tenha praticado qualquer grande ato heróico, se envolvido
pessoalmente em grandes controvérsias ou sido martirizada em virtude da sua fé.
No dizer de um de seus biógrafos: “ela
não escreveu nenhum livro nem jamais pregou um único sermão, mas seu
inestimável auxílio possibilitou que seu marido fizesse tudo isso como poucos
na história da igreja.” Estamos falando da Sra. Lutero.
Katharina nasceu em 1499, filha
de um nobre alemão que passava por dificuldades financeiras. Aos 3 anos de
idade, perdeu sua mãe, e seu pai a levou para estudar na escola do convento
Beneditino, onde vivia sua tia Madalena Von Bora. Aos 9 anos, entrou para o convento
propriamente dito, tornando-se freira aos 16 anos de idade. Quando Lutero fixou
as suas famosas 95 teses nos portões da Capela de Wittenberg, Katharina
estava com 18 anos de idade. Entretanto, ela e outras freiras do convento
ouviram falar do ensino bíblico de Lutero, e crendo no que ele pregava,
desejaram abandonar a clausura. Escreveram a seus pais, mas eles não tomaram
nenhuma atitude no sentido de libertá-las. Decidiram então escrever a Lutero,
tendo a carta sido redigida pela própria Katharina. Quando o reformador tomou
conhecimento do fato, encorajou um amigo negociante a ajudá-las a escapar. Esse
homem, Leonardo Koppe, ia frequentemente ao convento, levando alimentos e todo
tipo de mantimentos para abastecer o mosteiro, e uma noite em 1523, ajudou-as a
fugir, transportando as 12 noviças em um barril de peixes! Muitas retornaram às
suas famílias. Lutero procurou auxiliar a todas, ajudando-as a encontrar
moradias, maridos e empregos. Dois anos após a fuga, todas haviam seguido seu
destino, exceto Katharina, que morou por um curto período de tempo na casa do
pintor Lucas Cranach, autor de seu famoso retrato.
Em 1524, com a aprovação e
recomendação de Lutero, Katharina foi cortejada por um dos alunos
de Wittenberg, mas seu pai se opôs ao casamento. Neste mesmo ano, Lutero
arrumou-lhe um novo pretendente, o Pastor Glatz, mas ela recusou-se a
desposá-lo. Ela costumava dizer: “Só me casarei com o Dr. Lutero ou com alguém
muito parecido com ele”. Lutero ria ao ouvir isso, pois apesar de, já àquela
altura, condenar o celibato, não tinha intenção de casar-se: “nunca farão com
que eu me case!”, afirmou ele. Alguns garantem que ele chegou a interessar-se
por outra ex-freira, Ave Von Schonfeld, mas o relacionamento parece não ter
prosperado.
Porém, gradualmente, tanto pela
convivência, como por insistência dos seus amigos e seu pai, Lutero acabou
propondo casamento à Katharina. Eles ficaram noivos em 13 de junho de 1525 e
casaram no dia 25 de junho daquele mesmo ano, ou seja, doze dias depois! A
decisão parece ter causado surpresa, pois o próprio Melanchthon,
escrevendo a um amigo, declarou: “Inesperadamente, Lutero desposou Bora sem
querer mencionar seus planos ou consultar seus amigos”. Muitos foram contra o
casamento, pelos motivos mais variados. Primeiramente porque, àquela altura,
ainda não se admitia que os religiosos contraíssem matrimônio: tratava-se de um
escândalo! Segundo, pela grande luta que o reformador vinha travando contra
Roma: na condição de herege e proscrito, sua vida estava em constante perigo.
Outra razão era a diferença de idade: quando casaram, Lutero estava com 42 anos
e Katharina com 26! Ela também sofreu difamações pela união com o reformador,
mas, felizmente, o casamento ocorreu e eles viveram felizes por cerca de 21
anos, até a morte do reformador. São curiosos alguns escritos de Lutero sobre
esse período inicial de sua vida matrimonial. Escrevendo a um amigo ele
declarou: “Existem algumas coisas com as quais precisamos nos acostumar no
primeiro ano de casamento; o sujeito acorda de manhã e encontra um par de
tranças postiças no travesseiro, onde antes não havia nada!” Entretanto, após
um ano de casado, escreveu: “Minha Kathe é, em tudo, tão dedicada e encantadora
que eu não trocaria minha pobreza pelas maiores riquezas do mundo”. E mais
tarde: “Não há na terra um laço tão doce, nem uma separação mais amarga como a
que ocorre num bom casamento”. Finalmente, é bem conhecida sua declaração: “Não
há relação mais bela, mais amável e mais desejável, nem comunhão e companhia
mais agradável do que a de marido e mulher num casamento feliz”.
O príncipe Frederico havia dado
de presente a Lutero o prédio do mosteiro agostiniano em Wittemberg, e foi para
lá que a família se mudou em 1525. Katharina reformou o mosteiro e o
administrou, o que veio a permitir que Lutero gozasse de relativa paz e ordem
em sua vida privada. Ela dirigia e administrava as finanças da família, para
que ele pudesse dedicar-se às tarefas que essencialmente lhe competiam:
escrever, ensinar e pregar. Ela foi uma esposa dedicada e diligente, a quem
Lutero freqüentemente se referia como “Kathe, minha patroa (no inglês, my
lord)”. Eles tiveram 6 filhos, dos quais 4 sobreviveram até à idade adulta.
Além disso, cuidavam de uma parente de Katharina e, em 1529, com a morte da
irmã do reformador, mais 6 crianças – agora órfãs – se juntaram à família. Além
dos familiares e de um cachorro de estimação, era comum haver mais de 30
pessoas no mosteiro, entre hóspedes, viajantes em trânsito e estudantes (eles
costumavam receber estudantes, que pagavam pelos seus estudos, ajudando assim a
equilibrar o orçamento doméstico). Desse modo, sua rotina diária era bastante
atarefada: ela tinha uma horta, um orquidário, confeccionava material para
pescaria, e acabaram, posteriormente, adquirindo uma pequena fazenda onde
criavam gado, galinhas e fabricavam cerveja caseira. Ela também gostava de ler
e de bordar. Lutero costumava chamá-la de “a estrela da manhã de Wittenberg”,
já que diariamente levantava às 4 horas da madrugada para dar conta de suas
muitas responsabilidades. Com muita freqüência, o reformador caía enfermo, e
Katharina cuidava dele não simplesmente como esposa, mas quase como enfermeira,
devido aos grandes conhecimentos médicos que possuía.
Entretanto, sua vida não era
somente dedicada a coisas materiais. Seu marido a encorajava em seus estudos
bíblicos devocionais e sempre sugeria algumas passagens particulares para que
memorizasse. Quando ele se encontrava deprimido, era a sua vez de ajudá-lo:
sentava-se ao seu lado e lia a Bíblia para ele, edificando o seu coração.
Conta-se que, certa vez, Lutero estava bastante deprimido. Não se alimentava e
passava os dias trancafiado em seu quarto. Estava cheio de dúvidas sobre se o
que fazia era ou não da vontade de Deus. Katharina vestiu-se de preto e entrou
subitamente no aposento. Lutero tomou grande susto, pensando que alguém tinha
morrido. Katharina respondeu: “Ao que parece, Deus morreu!” A reação de Lutero
foi imediata: levantou-se e saiu do quarto, agradecendo à esposa por fazê-lo
retornar à vida.
Em termos de recreação, Lutero
gostava de participar de jogos ao ar livre com a família, e também apreciava os
jogos de mesa, como o xadrez, além de jardinagem e música. Ele e Katharina eram
pais diligentes, “disciplinando seus filhos, em amor”. Seu lar era famoso pela
vitalidade e felicidade ali reinantes. Dessa forma, a família do reformador
tornou-se um modelo para as famílias cristãs alemãs por muitos anos. Lutero
considerava o casamento como a melhor escola para moldar o caráter e a vida
familiar um método excelente e apropriado para treinar e desenvolver as
virtudes cristãs da firmeza, paciência, bondade e humildade.
Lutero faleceu em 1546, e
Katharina ainda viveu por mais 6 anos. Ela chegou a ver seus filhos atingirem a
idade adulta, alcançando posições de influência na sociedade, exceto aqueles
que morreram na infância, causando grande sofrimento as pais: sua primeira
filha (Elizabeth) que morreu aos 8 meses de idade, e a segunda filha (Madalena)
que faleceu aos 13 anos. Para termos uma idéia desses sofrimentos, segue um
breve relato. Quando Madalena adoeceu gravemente, Lutero orou: “Senhor, eu amo
muito a minha filha, mas seja feita a tua vontade”. Ajoelhando-se junto à
cabeceira de sua cama, falou: “Madalena, minha menina, eu sei que você gostaria
de permanecer aqui com seu pai, e também sei que gostaria de ir encontrar-se
com o seu Pai no céu. Ela, sorrindo, respondeu: ‘Sim, papai, como Deus
quiser'”. Finalmente, depois de alguns dias, ela faleceu em seus braços, e no
seu sepultamento, Lutero disse chorando: “Minha querida e pequena Lena, como
você está feliz! Você ressurgirá e brilhará como o Sol e as estrelas… É uma
coisa esquisita – eu saber que ela está feliz e em paz, e ainda assim, me
sentir tão triste!”
Quanto aos outros filhos, o mais
velho (Hans) estudou Direito e tornou-se conselheiro da corte. O segundo
(Martin), estudou Teologia. O terceiro (Paul), tornou-se um médico famoso, e a
terceira filha (Margareth) casou-se com um rico prussiano. A título de
curiosidade: os descendentes de Lutero que ainda vivem, descendem de sua filha
Margareth, dentre eles, o ex-presidente da Alemanha, Paul Von Hindenburg. No
mesmo ano da morte de Lutero (1546), Katharina deixou Wittenberg e fugiu para
Dessau, devido à guerra smalkaldiana e, em 1552, viajou para Torgau, fugindo de
uma peste que grassara em Wittenberg. Ela morreu em 20 de dezembro de 1552 na
cidade de Torgau.
Escrevendo, certa vez, a um
amigo, Lutero disse sobre Katharina: “Minha querida Kate me mantém jovem, e em
boa forma também… Sem ela, eu ficaria totalmente perdido. Ela aceita de bom
grado minhas viagens e quando volto, está sempre me aguardando com alegria.
Cuida de mim nas minhas depressões e suporta meus acessos de cólera. Ela me
ajuda em meu trabalho, e acima de tudo, ama a Cristo. Depois Dele, ela é o
maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia, vierem a escrever a
história de tudo o que já tem acontecido (a Reforma), espero que o nome dela
apareça junto ao meu. Eu oro por isso…”.Ao tomar conhecimento dessa declaração,
Katharina respondeu: “Tudo o que tenho
feito se resume a simplesmente duas coisas: ser esposa e mãe, e tenho certeza
que uma das mais felizes de toda a Alemanha!”.
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