John Wycliffe nasceu na terra natal
de “Occam”, na Inglaterra, aproximadamente na mesma data em que o exilado
excomungado morreu de peste em Munique. Embora chegassem a muitas conclusões
idênticas no tocante à igreja, Wycliffe e Occam divergiam grandemente nas
abordagens básicas da filosofia e da teologia. Wycliffe era realista em relação
às proposições universais, mas acreditava, assim como Occam, que o papa era
corrupto e que a igreja deveria ser governada pelo povo de Deus com seus
respectivos representantes e não pela estrutura hierárquica clerical.
Wycliffe
nasceu por volta de 1330 em Lutterworth, no condado de Yorkshire, na
Inglaterra. Morreu ali em 1384 como pároco, depois de ter sido afastado da
Universidade de Oxford pelos seus colegas e pelos líderes eclesiásticos, devido
aos seus ensinos radicais. Ainda jovem, Wycliffe tornou-se mestre no Balliol
College da Universidade de Oxford, alcançou rapidamente posição de destaque e
adquiriu grande reputação como erudito e forte defensor de reformas na igreja.
Enquanto dava aulas em Oxford, assim como muitos outros catedráticos, Wycliffe
era funcionário do rei da Inglaterra de quem recebia proteção contanto que suas
opiniões concordassem com as da realeza. Serviu de mediador entre a igreja e a
corte real nas disputas a respeito dos bens imóveis da igreja, impostos e de
outras questões conflitantes entre a igreja e o estado e escreveu dois grandes
livros sobre a teoria governamental.
Defendia a
tradução da Bíblia inteira para a linguagem do povo para que todos os cristãos
pudessem lê-la e estudá-la por conta própria. Graças a isso, é lembrado no nome
da maior sociedade de tradução bíblica do mundo.
Wycliffe
não era nada diplomático ou flexível em questões que envolviam suas fortes
convicções. Censurava a corrupção e abusos dentro da igreja e condenava
duramente os papas de sua época por causa da secularidade e obsessão pelo poder
e dinheiro. Um exemplo de sua invectiva contra o papa oferece uma amostra de
sua inclinação à polêmica: “Portanto, o papa corrupto é anticristão e maligno,
por ser a própria falsidade e o pai das mentiras”. Chamou os ubíquos frades de seu
país de “adúlteros da Palavra de Deus, que usam as vestes e véus coloridos das
prostitutas”. Wycliffe antecipou os ataques de Lutero contra a corrupção da
igreja de forma mais veemente em sua crítica às indulgências. As indulgências
eram documentos de absolvição do castigo temporal (como o purgatório) dos
pecados vendidos por agentes dos papas. Wycliffe condenou severamente essa
prática, assim como Lutero o fez em seus dias. A respeito das críticas que o
teólogo de Oxford fez contra a igreja, um biógrafo moderno de Wycliffe escreve:
“Um ataque como esse foi necessariamente o prelúdio para a Reforma e uma
contribuição importante de Wycliffe. De fato, pode-se dizer que o ataque de
Wycliffe foi tão direto, tão devastador que poupou os reformadores do século
XVI o trabalho de realizar a tarefa sozinhos”.
Em 1377, dezoito “erros” de Wycliffe
foram condenados pelo papa a pedido de alguns de seus colegas em Oxford. Ele
foi intimado a comparecer diante dos bispos da Inglaterra para se defender.
Nessa ocasião, conseguiu evitar a confrontação apenas porque a rainha-mãe o
defendeu firmemente. Em 1378, Wycliffe começou a criticar o Grande Cisma do
Ocidente, no qual dois homens e, posteriormente, três alegavam ser papas. Suas
críticas, no entanto, não se restringiram ao papado. Elas se estenderam às
doutrinas católicas essenciais como a transubstanciação, que se tornou dogma
semi-oficial da igreja no tocante à eucaristia no Quarto Concílio Laterano em
1215. A família real apoiou e protegeu Wycliffe até 1381, quando ele simpatizou
abertamente com a revolta dos camponeses. Sofrendo grandes pressões do corpo
docente de Oxford e dos bispos da Inglaterra, Wycliffe voltou à sua paróquia
natal em Lutterworth, onde passou o resto de seus dias escrevendo e organizando
uma sociedade de pregadores leigos pobres, conhecidos como lollardos. Morreu de
derrame enquanto conduzia o culto no último dia de 1384 e foi condenado como
herege e oficialmente excomungado pelo Concílio de Constança em 1415; ali
também foi queimado na fogueira seu dovoto seguidor boêmio, João Hus. Os restos
mortais de Wycliffe foram exumados, queimados e jogados no rio Swift pelo bispo
de Lincoln em 1428.
Diferentemente de Occam, Wycliffe era
um ardoroso realista no tocante às proposições universais. Nessa questão, assim
como também em muitas outras, ele recorreu à tradição cristã platônica da igreja
primitiva e de Agostinho e se posicionou com Anselmo. Empregava a lógica
escolástica, mas dava pouco valor ao aristotelismo de Aquino e ao nominalismo
de Occam. O realismo de Wycliffe manifestou-se em várias áreas da sua teologia,
mas em nenhum outro lugar com tanta força quanto em sua crítica à doutrina da
transubstanciação. Segundo ela, quando o sacerdote pronuncia as palavras da
consagração na celebração da missa, o pão muda de substância e torna-se
verdadeira e fisicamente a carne de Jesus Cristo enquanto o vinho torna-se de
fato seu sangue. Os “acidentes” ou qualidades exteriores do pão e do vinho
permanecem os mesmos, mas a substância interior é transformada de tal maneira
que, segundo a doutrina, a pessoa que participa da eucaristia realmente come e
bebe o corpo e sangue de Cristo. Embora essa doutrina da eucaristia não tenha
se tornado um dogma definitivo e formal – já não mais passível de debate –
antes do Concílio de Trento no século XVI, ainda na época de Wycliffe chegou a
ser crença e doutrina aceita pela Igreja Católica Romana. Wycliffe lutou com
ferocidade contra essa doutrina e usou o realismo como aliado.
Na obra On
the eucharist, Wycliffe levantou muitas objeções contra a doutrina da
transubstanciação e até mesmo a rotulou de “fantasias infiéis e infundadas” e
argumentou que ela levava à adoração idólatra dos alimentos. Mas seu argumento
mais forte baseava-se na metafísica realista. A referida doutrina subentende
que uma substância, como o pão e o vinho, pode ser destruída e que “acidentes”
podem existir sem que haja nenhuma relação com a substância. Segundo Wycliffe,
essa crença desonra a Deus que é o autor de todas as substâncias. Além disso,
viola as regras básicas da metafísica e da lógica. Em qualquer metafísica
realista, quando uma substância ou proposição universal é destruída, seus
acidentes também são destruídos. Pelo menos, assim ele acreditava e
argumentava.
De
qualquer forma, Wycliffe apresentou seu próprio conceito da eucaristia como
alternativa ao que chamava de “heresia moderna” da transubstanciação. Segundo
seu conceito, as substâncias do pão e do vinho permanecem enquanto o Espírito
do Deus vivo estiver nelas, de modo que contêm a “presença real” de Jesus
Cristo, embora continuem sendo pão e vinho. Em suas próprias palavras: “Assim
como Cristo é duas substâncias, a saber, terrena e divina, também esse
sacramento é o corpo do pão material e o corpo de Cristo”. Wycliffe rejeitava a
ideia de que qualquer sacramento funcionasse ex opere operato.
Nessa questão, rompeu com seu amado pai da igreja, Agostinho, e insistiu que,
para que o sacramento fosse verdadeiro e transmitisse graça, devia existir a
presença da fé. A visão de Wycliffe sobre os sacramentos – especialmente da
refeição eucarística – foi prenúncio do pensamento dos grandes reformadores
protestantes magisteriais: Lutero e Calvino. Sua doutrina da presença real de
Cristo por meio do Espírito Santo antecipa, sobretudo, a de Calvino.
A rejeição
de Wycliffe à doutrina e à prática católica romana medieval ia muito além da
crítica à transubstanciação. Seus conceitos sobre ministério e autoridade foram
ainda mais importantes para sua luta por reforma. O teólogo de Oxford
argumentava que a responsabilidade básica do ministro cristão – o sacerdote –
era proclamar o evangelho e esse dever sobrepujava todos os demais. “Pregar o
evangelho é infinitamente mais importante do que orar e administrar os
sacramentos. […] Difundir o evangelho produz um benefício maior e mais
evidente; é, por isso, a atividade mais preciosa da igreja. […] Portanto, os
que pregam o evangelho devem realmente ser consagrados pela autoridade do
Senhor”.
Como eles deviam ser escolhidos e
consagrados? Wycliffe chegou a recomendar que os membros de cada paróquia
escolhessem seu próprio sacerdote – uma ideia bastante radical para a época.
Ele estava profundamente desiludido com o poder, as riquezas, a corrupção e os
abusos de autoridade por parte dos líderes da igreja e voltou sua atenção para
o povo de Deus como a voz da vontade de Deus no governo eclesiástico. Embora
fosse realista, sua eclesiologia converge, em certos aspectos, para a de Occam.
Assim como o nominalista de Munique, Wycliffe defendia reformas radicais do
clero e até a abolição do papado em qualquer forma reconhecível.
Talvez o principal trabalho de
Wycliffe na teologia tenha sido sua defesa da autoridade suprema das Escrituras
para tudo que tem relação com a fé e a vida. A Igreja Católica medieval chegou
a considerar que a tradição tinha a mesma autoridade das Escrituras. A palavra
do papa era considerada, por muitos sacerdotes e bispos, a palavra de Deus,
embora a teologia católica não exigisse necessariamente essa crença. O dogma da
infalibilidade papal só foi promulgado oficialmente no século XIX, mas na
prática, as palavras e ações dos papas medievais eram respeitadas como
autoridade absoluta. Wycliffe rejeitava totalmente essa ideia e depois de 1380
começou a chamar os papas de anticristos. Até o papa precisava obedecer ao
“padrão evangélico” de ensino e prática derivado inteiramente das Escrituras e,
à medida que o papa deixava de ser verdadeiramente evangélico, deixava mesmo de
fazer parte da verdadeira igreja de Jesus Cristo e não devia ser considerado
seu senhorio temporal ou espiritual.
Wycliffe
escreveu o tratado chamado De veritae Sacrae Scripturae (Da veracidade das Sagradas Escrituras) em 1378, ano em que
começou o Grande Cisma Ocidental. Nele, apresentou a tese de que as “Sagradas
Escrituras são a suprema autoridade para todo o cristão e o padrão de fé e de
toda a perfeição humana”11. Afirmou, também, a infalibilidade
das Escrituras, que se interpretavam a si mesmas e o papel do Espírito Santo em
iluminar a mente dos leitores enquanto as lêem e estudam. Em outras palavras,
assim como os principais Reformadores protestantes de tempos posteriores,
Wycliffe rejeitava a necessidade do magisterium autorizado – o
ofício da igreja no ensino e interpretação das Escrituras. A Bíblia, a Palavra
inspirada de Deus, assume esse ofício e está acima de todas as agências
eclesiásticas.
Wycliffe rejeitava, também, o sistema
medieval penitencial da salvação. Nos séculos subsequentes a Gregório Magno, a
igreja ocidental e, especialmente, os monges desenvolveram um sistema
meticuloso e exigente de penitências, ou atos de contrição, que os cristãos
tinham que seguir para conquistar mérito perante Deus. Embora Wycliffe não
chegasse a aceitar plenamente o evangelho protestante da justificação
unicamente pela graça, antecipou Lutero e Calvino e outros reformadores do
século XVI ao condenar todas as práticas humanas que visavam conquistar méritos
diante de Deus. Sem nunca criticar ou abandonar as genuínas obras de amor como
parte integrante da vida cristã, Wycliffe atribuía todo o mérito somente a
Cristo e enfatizava a graça e a fé de maneira que não se ouviu falar na igreja
durante séculos. Além disso, endossava com firmeza a crença na predestinação e
tendia ao monergismo no seu conceito da intervenção de Deus em relação à
atuação humana. Baseava-se nas Escrituras e não na metafísica escolástica ou na
teologia natural.
Muitas
razões justificam a reputação de Wycliffe como precursor da Reforma
protestante. Nenhuma delas é mais importante, entretanto, do que a sua ênfase à
Bíblia como infinitamente superior, em veracidade e autoridade, a qualquer
tradição ou ofício humano. “Cento e cinquenta anos antes daqueles tempo (da
Reforma Protestante), Wycliffe agarrou-se à única autoridade adequada à
Reforma, concedeu-lhe posição de destaque em sua obra e não poupou esforços
para torná-la conhecida pelo povo, graças à tradução e à insistência na
pregação da Palavra”.
Nos anos finais, em Lutterworth,
organizou o grupo de evangelistas e pregadores leigos, posteriormente chamados
de lollardos, que ajudaram a preparar a Reforma na Inglaterra. Além disso,
lutou pela tradução da Bíblia para a língua inglesa e seus esforços produziram
entre seus seguidores a primeira Bíblia em inglês, chamada Bíblia de Oxford.
Seus livros e ensinos chegaram à cidade de Praga, na Boêmia, onde o grande
pregador e reformador João Hus usou-os para estabelecer ali um movimento
permanente pré-protestante. Posteriormente, Lutero aproveitou os trabalhos
tanto de Hus quanto de Wycliffe em sua luta bem-sucedida para reformar a
teologia e a vida eclesiástica na Europa.
Fonte: E-Crstianismo
Fonte: E-Crstianismo
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