quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Sete mergulhos no Jordão



A cura de Naamã talvez seja uma das histórias mais conhecidas da Bíblia, podendo ser analisada, interpretada e recontada por diversos ângulos temáticos. O milagre em si, é o foco central deste relato bíblico, mas é a “movimentação” de seus personagens que traz a grande riqueza literária e espiritual deste texto. Um poderoso general em desespero, uma esposa zelosa e persistente, uma menina estrangeira fiel as suas origens, um profeta obstinado, um sábio conselheiro e um servo ganancioso.

Cada ação gera uma reação... Cada decisão tomada pelo homem motiva a ação imediata de Deus. Muito mais que uma história sobre milagres, esta é uma história sobre as motivações que determinam quem somos de verdade, e como Deus intervirá em nossa vida.

A Síria, também chamada Arã, compreendia o país que ficava entre o rio Eufrates (ao oriente), e o Mediterrâneo (ao ocidente), com a Cilicia ao norte, e o deserto da Arábia ao sul, excluindo a Palestina. A Síria possuía muitas cidades famosas dentro dos seus limites. Entre essas, as principais eram Damasco, Antioquia, Selêucia, Palmira e Laodicéia. Aparece pela primeira vez na história da Bíblia, aliado contra Davi com Hadadezer, rei de Zobá (II Samuel 8:5). O resultado da guerra foi a submissão da Síria a Davi, mas no reinado de Salomão, após uma série de revoltas populares, ficaram os reinos da Síria independentes de Israel, com quem tiveram repetidas guerras sob o governo da dinastia de Hadade, entre as quais o notável o cerco de Samaria, descrito em II Reis 6 e 7. Depois disto, assassinou Hazael o rei da Síria, e usurpou o trono, oprimindo o reino de Israel, sendo posteriormente vencido por Jeoás, rei de Israel (II Reis 13:22- 25). Jeroboão II estabeleceu uma aliança entre a Síria e Israel contra Acaz, rei de Judá, sendo que este chamou em seu auxilio o monarca assírio, Tiglate-Pileser. Este viria a ser o começo da derrocada síria para os assírios.

E é exatamente esta história de amor e ódio entre Israel e Síria  (hoje, muito mais inclinada ao ódio) que contextualiza  a emblemática história de Namaã, o general leproso.

No período bíblico, a lepra era a mais aterradora das enfermidades, pois além do aspecto contagioso, ela ainda era incompreendida, e, portanto, incurável. Os portadores desta doença eram exilados do convívio social e se isolavam em colônias leprosarias fora da cidade, onde morriam não apenas em decorrência da enfermidade, como também pela privação dos víveres básicos. Naamã era um homem de poder, uma figura de destaque na nação e temido pelos seus inimigos (II Reis 5:1). Só havia um problema: era portador de lepra, uma doença incurável, que fazia desse grande vencedor um homem derrotado. Naamã era um vencedor vencido por uma doença. Sabemos que existem variação nas formas em que a lepra se manifesta, e que provavelmente Naamã era portador de uma variante menos violenta da doença, podendo manter relações sociais. Mesmo assim, é evidente o desconforto das pessoas a sua volta com a situação, bem como o sofrimento físico e emocional de Naamã, cujas atribuições militares exigiam dele saúde e disposição, duas coisas que a “lepra” consumia progressivamente. Ele ansiava por um milagre.

A Bíblia nos mostra que havia em sua casa uma menina sem nome, porém, muito importante em sua vida, a qual foi trazida cativa da terra de Israel por suas tropas (II Reis 5.2). Vendo seu estado e preocupando-se com seu bem estar, a menina comunica a esposa do general que seu marido poderia ser restaurado se estivesse diante do profeta que estava em Samaria. A palavra dessa menina trouxe ânimo à sua esposa que, com entusiasmo, lhe deu a notícia. Com as esperanças renovadas, Naamã fez saber a seu rei, o qual escreve uma carta ao rei de Israel e entrega provisões a seu valoroso general.

Pouco sabemos sobre estas duas mulheres, apenas que uma era a devotada esposa de Naamã e que a outra não passava de uma serviçal com origem israelita e pouca idade. Mas existe aqui uma lição valiosa sobre nunca negar quem na verdade somos. Não existem registros detalhados sobre a menina deportada, mas o texto evidencia que ela conhecia muito bem a sua história, sua gente e o local de sua origem. Da cozinha daquela grande casa, ela podia acompanhar o sofrimento de seus senhores devido a doença de Naamã, observava o vai e vem dos médicos com diagnósticos cada vez mais pessimistas e os momentos de fraqueza daquele que era um herói nacional.

Segundo a Bíblia, embora não fosse um servo do Deus Verdadeiro, Naamã era um homem bom e integro e isso comoveu o coração daquela menina, que se sentia impelida a fazer algo em favor de seu patrão e sabia como ajudar. Porém, sua posição de serviço não lhe proporcionava voz ativa naquela casa, e o fato de se manter calada era uma garantia de evitar se envolve-se em problemas futuros. E agora? Omitir-se e ficar na zona de conforto ou expor-se perigosamente para ajudar o próximo? Aquela menina escolheu o caminho que poderia lhe trazer consequências terríveis em caso de engodo, e reportando-se a sua senhora, garantiu que em Samaria, havia um profeta que poderia curar seu marido.

A esposa de Naamã entra nesta história na exata posição descrita em Provérbios 14:1:  “A mulher sábia edifica o seu lar”, e se apressa em anunciar as boas novas. Embora suas esperanças tenham sido castigadas por decepções e suas forças para lutar cada dia estejam mais escassas, aquela mulher decide agarrar-se a um novo fio de fé e encoraja seu marido a buscar ajuda no lugar mais improvável: uma cidade subjulgada. Mas o que levou a esposa do general Naamã a confiar tão cegamente nas palavras de uma criança? O pragmatismo dirá que foi o desespero, porém há uma possibilidade que melhor se enquadra nesta história: TESTEMUNHO.

O último agente usado por Deus para a cura de Naamã foi o profeta Eliseu, que tanto ignorou sua presença quanto seus presentes. Por intermédio de seu servo Geazi, enviou um recado para Naamã instruindo que ele mergulhasse por sete vezes no Rio Jordão. Este caudaloso rio de águas escuras origina-se de quatro rios menores cujas cabeceiras estão no monte Hermon; chamados Barreight, Hasbani, Ledam e Banias, com profundidades variando de 3 a 35 metros em  seu corredor. O nome original deste rio é Iarden, que significa “declive” ou “o que desce”. Logo, este era o desafio proposto a Namaã, descer de sua posição altiva e se sujeitar a voz do Senhor.

Quando Naamã se mostrou relutante a instrução do profeta e decidiu voltar para a casa sem realizar a missão recomendada, foi um dos seus servos quem lhe deu o sábio conselho: Senhor, se já viemos até aqui, o que custa agora fazer conforme a palavra do profeta? São apenas mergulhos, e isso é fácil de fazer. Caso ele tivesse lhe pedido algo muito mais difícil, o Senhor não faria? – Depois destas palavras de seu subalterno, o poderoso Naamã revê suas convicções, e considera justo o argumento apresentado.

Neste ponto, ainda sem saber, Naamã começa a ser curado interiormente, deixando aflorar um sentimento de humildade que seria a chave do milagre. Ao chegar no Jordão, Naamã se viu frente a frente com a batalha mais ferrenha de sua vida, a luta contra o próprio “eu”. Despindo-se de suas roupas militares, afunda nas águas lamacentas do rio pela primeira vez, mais nada acontece. Segunda vez... Nada... Terceira vez... Ainda leproso... Quarta vez... Leproso e enlameado... Quinta vez... Nada acontece outra vez... Sexta vez... Frustração e desespero... Sétima e última vez... Naamã retorna a superfície com a pele tão limpa quanto a de um bebê.

Após o milagres, Namaã quis presentear o profeta com trezentos e cinquenta quilos de prata, setenta e dois quilos de ouro, e dez vestes festivas coloridas e caríssimas, mimos que Elizeu recusou prontamente. O profeta era um homem conectado, inviolável, e que jamais seria capaz de negociar seu ministério ou a benção de Deus. Com esta atitude, ele nos ensina que “unção” representa o selo de uma autoridade, e que homens de Deus devem ser incorruptíveis, não misturando o santo com o profano.

Por outro lado, seu servo Geazi, ao ver as riquezas oferecidas ao seu amo, deixou a cobiça falar mais alto e criou um estratagema para conseguir tomar possa daquelas preciosidades. Ele esperou que Naamã se afastasse o suficiente para não levantar suspeitas, e então partiu atrás da comitiva síria. Ao alcançá-los, disse ao general Naamã que Elizeu mudará de ideia e decidirá aceitar os presentes. Assim, voltou para a casa abarrotado de riquezas conseguidas através da mentira, da desobediência e do engano.

Como consequência deste ato, a lepra de Naamã foi transferida para ele, culminando em seu isolamento social. A doença impossibilitou que Geazi continuasse servindo ao profeta, pondo fim a um ministério que poderia ser tão bem sucedido quanto ao de seu professor, vide o exemplo de Elias e Elizeu. 


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